30.10.06

a minha vida é feita
da cópia das dores dos outros
a minha dor, essa,
é só minha imagem
que se desfaz e me amedronta

outubro 2006

16.10.06

vem vai
gangorra, balanço
criança, menino
tudo muito longe
eu gostava de banho de mangueira
me lembro de descobrir o arco-íris na água
tonha, te vejo com a mangueira
a água na boca
molhar tudo, por igual
nada deve ficar diferente
corre no pátio
tudo é sonho
tudo é dia

março 1977

15.10.06

o olhar pode se encantar
com o perceber as cores
o olhar deve se encantar
a cada momento

e então ser saboreado
lentamente
como fruto colhido do pé
quando eu perdi meu filho
era a carne rasgada por dentro
aborto indesejado me sangrando

agora vou perdendo minha mãe
vejo ela sofrendo
se rompe a última camada
que me protegia na vida
dilaceram-se minhas certezas
e desfazem-se os laços

já não quero mais irmãos ou irmãs
já não quero vê-la
e me volta
mais uma vez
o medo da vida

março 2005
me apaixono muito facilmente
difícil é esquecer a paixão

fica marcado no meu corpo
cada passagem de cada carícia
rios às vezes tansbordantes
de risos e olhares
à vezes secos
na economia das palavras

durmo assim assombrada
por vozes e gestos
que já não existem
tive uma infancia feliz
barro ecoreendo entre os dedos
cavalo correndo
as mãos pequens na crina
leite em pó misturado com chcolate e gotas de água
frutas, revistas que me davam medo
a vista de cima da árvore
tudo longe, tudo perto
e eu quieta assistindo
palavras, palavras, palavras
miha mãe ao longe, meu pai mais ainda
e os irmãos, tios e primos

ficou esse sabor
da vista de cima da árvore
tudo muito longe e muito perto
agradeço o privilégio
de ter convivido com voce meu filho
com voce meu pai
e ter conhecido assim
a alegria e a generosidade

agradeço o privilégio
de poder ver a quase silhueta
da cidade e do porto
entre tons de vermelho, preto, azul, cinza
e marinheiros perfilados ao navio

agradeço a felicidade
de ver as transparencias
de ouvir os encantos

agradeço o encanto
de meus filhos, de minha mãe
e de amar, assim, sempre

9.10.06

tenho tentado acreditar
já não é mais ter fé
é apenas acreditar
no amanhã, nas dores amansadas, nos sorrisos

acreditar

mas fica faltando alguma coisa
como num filme em que todos riem e voce não consegue saber porque
acordei assustada
o sonho me fez rever o tempo
aos poucos percorri
o sonho e os dias.
recoloquei no lugar
gestos, medos, silencios.
como numa máquina fotográfica
em que ajusto o foco
olhei de volta para mim.
não vi fantasmas
tinham desaparecido.
não vi figuras frágeis ou vis
percebi a mim mesma
carne, sorriso, perfumes e essencias
idéias embaralhadas, idéias arrumadas
e uma enorme vontade de continuar.

6.10.06

a imaginação deixo às crianças
e aos escritores
quero apenas o som delicado das palavras
e escolher entre elas algumas
medo das palavras
do reflexo
espelho que bate de volta
no meu rosto

medo das pessoas
que me olham
ora com pena
ora com medo

bom é de manhã
quando tenho certeza de vencer
todos os meus moinhos

5.10.06

Lembranças

Seleciono cotidianamente
as imagens que lembrarei.
Não quero as dolorosas
muito menos as cansativas.
Quero as cheias de som,
profusas coloridas,
rápidas de preferencia
e passo a vida com elas,
essa memória escolhida
página por página.

Velha

Agora estou mais velha,
quase igual às que menina via
e me assustavam :
pele encolhida,
cabeça baixa,
andar arrastado,
talvez, talvez
não tão velha,
mas por dentro já sinto :
o cheiro de gaveta fechada
o silencio dos quarto solitário
e o tempo que nunca para.

Colcha de retalhos

Acho que o vestido era vermelho e branco
e brincava de bola com os meninos.
Uma palavra não dita
ficou perdida.

Os anéis nos dedos
eram cheios de símbolos, cores, formas.
Os cachos da menina
eram dourados e preenchiam
de felicidade os olhos grandes

Algum gesto era necessário
mas o medo já estava presente.

As flores azuis grudam nas orelhas
e fazem lindos brincos de princesa encantada
No andar de cima tinha uma biblioteca cheia
de livros e muito escura.

Se ao menos não existissse
essa tristeza tão infinita.
O balanço era empurrado tão alto que batia
com os pés no céu
O banho de mangueira nas bacias,
uma azul, a outra rosa no jardim de muitas flores.

A infância é uma colcha de retalhos.

Ainda a espera

Espero que surjam atrás da porta
todos os que perdi
mas tenho certeza de que
não mais os verei.
fica apenas a sensação da esperança
mesclada a do desespero.

As palavras

As palavras escorrem,
mas sem a liberdade de um gesto.
Sou parte de um todo, de uma mágica
e em algum lugar desvendarei
todo o mistério.
Então,
não precisarei mais da procura
da análise, das palavras,
e nem mesmo das pessoas,
e fugirei para bem longe
num mosteiro encantado,
com freiras que fizeram o voto de silêncio,
e muitos livros,
que já não terão nenhum interesse para mim.
e a música não terá mais som.

A cada dia tenho mais fé.
A santa na minha mesa,
a madeira velha,
nunca se mexe.
Não transubstancia.
Não me traz milagres.
E no entanto,
a cada manhã,
nossos olhares se cruzam,
(os de madeira e os meus)
e a fé faísca,
como se sempre tivesse estado presente.